Veículo: Jus Econômico
Autor: Romeu Tuma Júnior
Data: 16-12-2014
Com o recente advento da Lei 13.008/14, as condutas criminosas de contrabando e descaminho, anteriormente descritas num tipo penal único do Código Penal, foram objeto de alteração legislativa e passaram a integrar tipos penais diversos e autônomos.
Tratam-se basicamente das condutas de: Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria (descaminho); e importar ou exportar mercadoria proibida (contrabando).
Contudo, a alteração legislativa não se limitou a separar os tipos penais em dispositivos diversos. Cuidou ainda da alteração no tocante às condutas criminosas dos tipos, além da pena em abstrato do crime de contrabando.
Os crimes de contrabando e descaminho, em sua redação anterior, não possuíam penas expressivas, apesar da grande reprovabilidade social de tais condutas.
A pena cominada para ambas condutas era de reclusão de 01 a 04 anos, o que permitia uma punição branda, haja vista que o condenado poderia ser beneficiado com a suspensão condicional do processo, e portanto, ficaria “preservado” do cárcere, e ainda que não fosse beneficiado pela suspensão condicional, a pena máxima de quatro anos não permite o regime fechado, o que na prática, resultava no mesmo.
Numa breve análise dos dispositivos legais, tem-se o seguinte:
“Descaminho
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem:
I – pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei;
II – pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho;
III – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem;
IV – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.
§ 2o Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.
§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.”
“Contrabando
Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem:
I – pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando;
II – importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente;
III – reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação;
IV – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira;
V – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira.
§ 2o Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.
§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.”
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
O legislador não alterou a pena do crime de descaminho, mas a pena do delito de contrabando foi AUMENTADA para 02 a 05 anos de reclusão.
As consequências são basicamente a inadmissão de suspensão condicional do processo e o prazo prescricional do crime, que passa de oito para doze anos.
Outra inovação experimentada tanto no crime de descaminho quanto no crime de contrabando, é a aplicação da pena em dobro se o delito for cometido em transportes marítimos ou fluviais (por mares ou rios). A redação anterior previa o aumento de pena apenas no tocante ao transporte aéreo.
As inovações são positivas, por abarcar uma nova gama de condutas, especialmente porque temos por experiência que grande parte das quadrilhas, tem usado rotas com nossos países vizinhos, por meio de transporte fluvial e marítimo, especialmente no contrabando de armas, e no descaminho de nossas riquezas tais como soja, café, etc. Entretanto, existe um lado econômico e social dos crimes de contrabando e descaminho um tanto ignorados pela população em geral, e também pelo governo.
Não é segredo para ninguém, que o Governo Brasileiro, há muito tempo tem sido tolerante, especialmente com países do Cone Sul, evitando apertar o cerco aos grandes contrabandistas e as grandes organizações criminosas que praticam roubos de veículos e o descaminho, que em muitos casos, estão instaladas no próprio poder público de países “irmãos”.
Também a cultura de aquisição de produtos contrafeitos por parte da população, inclusive pelas camadas menos endinheiradas da não mudou nas últimas décadas. E não irá mudar tão cedo.
Isto se dá porque o poder de compra da maioria da população brasileira é baixo, mas os sonhos de consumo são bastante altos. Desta forma, para satisfazer, em parte, seus sonhos, muitas vezes, os consumidores recorrem a produtos contrabandeados, ou mesmo pirateados, por óbvio, de preços muito mais baixos, como forma de “inserção” no mercado consumidor de grife.
Por outro lado, o combate ao contrabando não se mostra eficiente, justamente pelo motivo de que há um enorme mercado consumidor para tais produtos, e uma repressão errônea, vez que visa o varejo, o pequeno “contrabandista” e o pequeno consumidor, e nada de incomodar o intermediário e o produtor. Só se corre atrás de camelôs!
Os contrabandistas, por sua vez, estão cada vez mais fortalecidos pelo grande mercado consumidor que possuem versus a pena aplicada pelos crimes dessa natureza. Constata-se, de maneira alarmante, que nesse caso também, passa-se a sensação de que o crime compensa.
O contrabando e o descaminho não são praticados por amadores. São grandes organizações criminosas amparadas por um enorme mercado consumidor e ainda pela quase ausência integral de reprovabilidade social, visto que parece ser um crime sem sangue, sem violência, quando na verdade, por trás das organizações criminosas que os alimenta, há uma indústria de horrores engajada na prática das maiores perversidades, tais como homicídios, tráfico de seres humanos, redução de pessoas à condição análoga a de escravos, dentre inúmeras outras atrocidades.
O papel do Estado, nesse caso, ultrapassa a mera repressão ao contrabando ou ao tipo penal. O trabalho estratégico, deve atingir o coração das organizações criminosas, sua principal estrutura funcional, que é a pilastra financeira. Em paralelo, deveria existir um trabalho de conscientização da população, haja vista que se não houvesse expressivo mercado consumidor, não haveria o expressivo volume de mercadorias contrafeitas que existe. É algo como a relação entre produção e consumo de drogas, um não sobrevive sem o outro.
Não se trata apenas de sonegação de impostos ou o ato de importar ou exportar mercadorias proibidas. Existem outras consequências em cadeia, como o desaquecimento da produção nacional, a geração de empregos, a frustração na circulação de riquezas, etc.
Demais disso, o contrabando existe para alimentar o crime organizado, o tráfico de drogas e outras muitas condutas penalmente reprováveis.
A mudança legislativa foi positiva, mas em termos práticos não aumenta a reprovabilidade do crime a ponto de fazer o criminoso refletir sobre a reprimenda. É preciso entender que nesse tipo de crime, o criminoso só para quando quebra. É como empresa, só fecha quando não tem mais dinheiro, quando o Estado tira as possibilidades dele ter acesso ao recurso financeiro que retroalimenta sua atividade criminosa.
Por isso o aumento da pena foi verdadeiramente inócuo do ponto de vista dos papéis exercidos pela pena, quais sejam, a prevenção e a repressão do próprio crime.
Não se defende aqui a legislação penal de emergência que se verifica no país. De fato, penas mais severas não são por si só a solução para a diminuição da criminalidade. Podem ajudar em alguns casos, mas não resolvem todos os problemas solitariamente, especialmente quando não são capazes de descapitalizar os criminosos nos crimes cujo oxigênio é a lucratividade.
Falta, paralelamente às alterações legislativas, a criação e a propagação de uma cultura capaz de mudar hábitos com base no esclarecimento, na realidade e, principalmente, na possibilidade da participação da sociedade na construção de uma política pública de segurança que englobe, inclusive, esclarecimentos sobre os malefícios trazidos na aquisição de produtos contrabandeados e/ou pirateados.
Uma coisa é certa, não adianta o legislador e principalmente o governo, achar que fiscalizando com maior rigor famílias que vão e voltam à Disneylândia, irá resolver o problema, pois esses são justamente aqueles que realizam sonhos quando encontram preços acessíveis, que no Brasil parecem impraticáveis pelo custo país, ai embutido o alto preço da corrupção, outra importante causa de mercado para pirataria.
A punição no varejo, nos canais de embarque e desembarque de passageiros, pomposamente prometida pelas autoridades para as férias de verão, é só penalização de “araque” e contra o alvo errado, pois o grande problema não passa no raio X dos aeroportos e sim nos containers que saem e entram, sem apertar os botões.